Gente suburbana




No quinto capítulo de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, o autor trata das questões do “homem cordial” em uma sociedade intimamente ligada com os costumes rurais dos tempos coloniais. Achei interessante analisá-lo e tentar transferi-lo para este blog, numa tentativa de reanimá-lo. Destaquei os pontos onde ele trata da aversão aos ritualismos e a informalidade até mesmo no campo religioso.

Tratamos do subúrbio carioca. Uma parte da cidade do Rio de Janeiro pouco explorada em algumas épocas, rotulada negativamente em outras e que, após uma pacificação ainda precária, insistem em mantê-la como algo exótico. Mas o que distingue o carioca suburbano do carioca da orla? Encontrei em Sérgio Buarque o começo destas minhas perguntas.

Sabemos que o suburbano tem suas raízes numa mistura de culturas marginalizadas nos últimos tempos de um Império em crise e nos primórdios de uma República ainda nos moldes rurais, com grandes proprietários de terras e escravos no poder. Achamos por aqui qualquer informalidade de dar espanto àqueles cuja etiqueta obriga a manter uma robótica sem vida ao sentar-se a mesa ou ao dialogar em sociais nos apartamentos mais caros da cidade. O autor afirma que o “homem cordial” será um presente do Brasil ao mundo, devido ao nosso trato, nossa hospitalidade e generosidade, “virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam”. Seria uma herança dos tempos coloniais, sendo uma “influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”. Sendo um país com base colonial cristã católica, onde a pompa e a ostentação sempre foram marcantes, a vontade de impressionar o próximo é marcada em nossas vidas. Este acolhimento, a intimidade com que tratamos nossos recém conhecidos, aflora nossa cordialidade. Uma cordialidade superficial, como afirma Sérgio Buarque ao dizer que esta tentativa de formalidade é, “de algum modo, organização de defesa ante a sociedade”. Ora, a semente da civilização fora plantada a um oceano de distância de uma metrópole onde as regras também não serem 100% seguidas. De fato, em Portugal a boa conduta deveria ser mais rígida devido a proximidade geográfica com as terras papais, por exemplo. No Brasil, ao contrário, você se depara com diversas formas de culto e, além do mais, uma geografia totalmente diferente da Europa. Quem garantiria uma norma severa? Portanto, a regra do tradicionalismo esbarra em diversos fatores; “Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante ao social”, afirma Sérgio Buarque. A gente de nossas terras, então, ostenta algo que é superficial e que em seu íntimo mostra-se uma “expressão legítima de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Talvez o receio em “apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência” e, claro, a necessidade da união ante ao adverso de novas terras fez de toda formalidade uma barreira quebrada ao se pisar e viver em terras tropicais.

Tal informalidade marcante se mostra até no linguajar, aponta o autor: “A terminação ‘inho’, aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração”. Por que, então, se nós, suburbanos, somos herdeiros diretos destas formas de tratamento, não temos a alcunha da legitimidade do ‘ser carioca’?  Não temos praia, não vivemos na orla. Ostentamos algo que quase não possuímos pela conduta de não estarmos por baixo daqueles que já são “nobres” de nascença. Somos filhos daqueles que colonizaram a terra brasileira, a nobreza do Brasil. Intimamente nos relacionamos até com entidades e santos religiosos; Vestimos São Jorge a nossa vontade e o colocamos para beber cerveja junto conosco. A Virgem Maria é ostentada em ambientes ditos profanos, afogamos Santo Antônio, nomeamos outros tantos com nomes no diminutivo. Por que vendem uma imagem elitizada do carioca, quiçá do brasileiro? “Nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os santos com intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos”, afirma o autor. Nossa religiosidade é sagrada e profana, ao mesmo tempo. Podemos observar em terreiros de Umbanda e Candomblé, onde santos católicos se misturam com Orixás africanos.

Nosso culto sem o rigor metropolitano, lá do outro lado do Atlântico, nos permitiu construir uma sociedade aberta, superficial. Julgamos aqueles que fogem de uma conduta imaginária, mas agimos do mesmo modo. Somos hospitaleiros, desconfiados até certo ponto. O subúrbio carioca tornou-se o encontro da vivência na grande cidade com o meio rural. Crendices e ostentações, caboclos santos que dividem o espaço e veneram Jesus Cristo. O que nos impediria de crer e ser assim? “A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa”, afirma Sérgio Buarque de Holanda, “nem bastante disciplinada. (...) Ele é livre, pois para se abandonar a todo o repertório de idéias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades”. Resumindo: temos o nosso jeitinho para lidar e transformar tudo aquilo que nos é imposto. E viva a sociedade suburbana!

FONTE: HOLANDA, Sérgio Buarque de, O homem cordial: Aversão aos ritualismos: como se manifesta ela na vida social, na linguagem, nos negócios; A religião e a exaltação dos valores, in “Raízes do Brasil”, 26º Ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 146-151.

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