Nos caminhos de Jorge



Conta a História que no dia 23 de abril de 303, a mando do imperador romano Diocleciano, morreu um mártir do cristianismo, que naquela época, pouco a pouco, permeava a sociedade politeísta do vasto território dominado por Roma, onde apenas era aceito o culto ao imperador. Seu nome atravessaria eras até chegar no século XXI.

Jorge teria servido nos destacamentos legionários do grandioso império romano onde hoje é a Turquia, mais precisamente na Capadócia. O motivo de sua sentença fora professar os ensinamentos de um outro mártir, Jesus, o Cristo, que, ao que tudo indica, pregava a união de seu povo frente aos abusos e imposições do império que dominava o médio oriente. O soldado fora sentenciado à degola por continuar a insistir e afirmar sua fé cristã, mesmo após ofertas de terras e riquezas por parte do imperador.

Esse foi um breve resumo de como Jorge da Capadócia tornou-se um dos santos mais importantes da Igreja Católica, tanto Romana, quanto a Ortodoxa. Indiscutivelmente, é um dos mais populares do Brasil e, sem dúvida, do Rio de Janeiro. Padroeiro de Portugal, sua popularidade chegou em terras brasileiras com a grande leva de portugueses que sempre vinha tentar a vida em nosso país.

Atravessar o Atlântico sempre foi um ato de tornar os santos mais um membro da família. Sabendo das adversidades a serem vencidas em novas terras, desconhecidas durante os dois primeiros séculos de colonização, só exploradas após o ouro de Minas no século XVIII e demarcadas no século XIX com a proposta de uma identidade nacional, aproximar as divindades de si parecia ser a melhor maneira de lutar contra os mistérios da América: Lendas indígenas mescladas aos contos africanos, contos das matas, lendas caboclas. Até o diabo ganhou novo papel na América... E nesse jogo cotidiano de mesclas e sincretismos, São Jorge tornou-se Ogum, para que os negros continuassem a cultuar seu guerreiro nas senzalas. Tornou-se tão íntimo e protetor das classes populares no Rio de Janeiro que até bebe cerveja e está presente nas rodas de samba.

Esse caráter foi descrito por Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", quando o autor mostra a intimidade gerada pela necessidade de vencer as dificuldades de uma terra desconhecida; a afeição gerada pelo mutualismo na hora de construir uma casa, de cuidar das plantações, de lutar contra nativos hostis à colonização. A necessidade de agir em comum contra o "inimigo" estreitou laçou, criou parentescos que iam além do sangue. A já descrita falta de "orgulho de raça" por Gilberto Freire por parte dos portugueses, longe da metrópole e em uma terra que acreditava-se ser o paraíso (ou o inferno, para alguns), a partir de um cristianismo flexível tal qual o ibérico, permitiu aproximar ainda mais os santos do homem. Outro autor que exemplifica essa atitude é Laura de Mello e Souza, em "O Diabo e a Terra de Santa Cruz", onde mostra a facilidade popular com que se tratava a Virgem Maria e Jesus, ao ponto de ameaçá-los, como o caso de uma portuguesa que gritava em altos tons nas ruas de São Sebastião do Rio de Janeiro que arrancaria os pentelhos de Maria pela mesma ter deixado-a viver nas adversidades coloniais.


Com São Jorge não poderia ser diferente. É Ogum na Umbanda. É pagodeiro, sambista nas rodas de samba. No dia 23 de Abril são oferecidas feijoadas em seu nome. É beberrão e protege os botecos e bares da cidade. Em um ambiente profano, sobressai seu perfil sagrado. Guarda o populacho que luta contra o dragão do dia a dia, de um sistema que arrasta a todos para a beira do ralo, ameaçando de afundar aqueles que não seguem suas ordenanças econômicas. Jorge dá proteção aos guerreiros cariocas. Praças ostentam suas imagens. E quem ousa condenar? São Jorge é íntimo do carioca. É parte da família. A sociedade da Cidade Maravilhosa fora construída pelo mutualismo popular em que as elites viravam as costas. As favelas foram erguidas por cooperação de seus moradores, o subúrbio fora capinado e loteado por solidariedade vicinal. Como suportar os descasos dos homens? Recorrendo ao divino, que de sagrado torna-se profano ao ser introduzido no cotidiano daquele que precisa improvisar para viver.

É preciso estar vestido e armado com as armas de Jorge, sempre.

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