Uma vela pra Deus e outra pro Diabo: Religiosidade popular brasileira e suas raízes.



"Santo Antônio pequenino
Amansador de burro brabo
Amansai meus inimigos
Com setenta mil diabos..."

São cantigas como essa que me fascinaram. Essa questão de convivência do sagrado e do profano, onde começa um, onde termina o outro, me fizeram enxergar o valor da miscigenação religiosa popular brasileira; como, a partir de simples cantigas religiosas de Umbanda você pode abrir diversas portas para pesquisar e responder suas questões sobre uma sociedade que lutou contra adversidades improvisando seu modo de vida. Como disse Gilberto Freire, tal mistura só foi possível graças a flexibilidade de um catolicismo vindo de terras portuguesas com esse perfil dinâmico, onde as outras culturas e crenças facilmente foram absorvidas e incorporadas ao que veio a ser um catolicismo único, que é o brasileiro (FREIRE; 1933). Religiosos, sacerdotes e representantes da religião vindos da Europa se abismavam com a maneira pela qual o cristianismo católico rolava no Brasil: padres andando descalços no meio do povo, misturando-se à população leiga, sustentando mulher e filhos, numerosos filhos, pouco instruídos e mal alimentados. Além disso, como permitiam a veneração de figuras nativas indígenas sendo comparadas a figura da Ave Maria, o Menino Jesus no meio de patuás africanos, crucifixos no meio de altares profanos aos olhos da Igreja. Tudo era absurdo.

Quando, na última década do século XV, se deu o início das Grandes Navegações, um dos problemas a serem combatidos era o domínio islâmico nas rotas orientais da Europa. A necessidade de encontrar novos caminhos para o mercantilismo da era moderna lançou Portugal e Espanha ao mar, também com a prorrogativa de expandir a fé cristã. Mas a preocupação voltada para o combate aos infiéis não impediu que a cultura islâmica se perpetuasse na península ibérica, afinal a contribuição dos seguidores de Maomé fora muito importante para a civilização daquela região, desde os tempos da expansão muçulmana.

Apesar da ameaça externa, internamente Portugal enfrentava as crendices populares que ainda residiam em uma mentalidade medieval de sua escassa população: costumes e superstições que muito incomodavam a Igreja Romana na tentativa de tornar sua fé única e absoluta. Mesmo lutando contra as crendices, de alguma forma o cristianismo necessitou de tais costumes para se erguer na Europa, já que muitos de seus dogmas e ritos são herdados de tradições pagãs. Assim, como disse anteriormente, a religião portuguesa cristã sempre foi maleável em seu íntimo, mesmo que sua casca fosse uma tentativa de seguir as bulas romanas dos princípios da fé católica. Com a descoberta do Novo Mundo, a preocupação das florestas medievais e seus mistérios se transferiram para o desconhecido da América: lobisomens, sereias, espíritos das florestas que figuravam em contos medievais agora residiam nos sertões da nova conquista. A preocupação era, agora, expandir a já permissível religião metropolitana entre os nativos encontrados, que veneravam entidades ligadas ao meio ambiente. Não podemos julgar valores em relação à mentalidade de época ao dizer que os portugueses foram destruidores de uma cultura rica. Com olhares de século XXI, após diversas revoluções científicas e culturais, podemos afirmá-lo, mas pare e pense: Na mentalidade de um desbravador do século XVI, patrocinado por uma coroa carola, que seguia a risca os mandos de Roma, a cultura indígena era pagã, assim como todas as outras que não professavam a fé cristã; ele estaria fazendo o certo diante da vontade de seu rei, que era o representante de Deus no mundo dos homens. 

Descoberta a América portuguesa em 1500 (ou apenas ocupada a partir de 1500, como querem algumas hipóteses), o problema da colonização fora mais um atributo que permitiu a miscigenação humana e cultural: Portugal não tinha população suficiente para tal e, por isso, teria sido permitido o casamento entre brancos e indígenas. Sabemos que não era necessário uma concessão oficial para que isso tivesse acontecido, e não foi apenas com a mulher ou o homem indígena que houve esse matrimônio: a introdução do escravo negro africano trouxe mais um elemento essencial para a formação da sociedade brasileira e seus costumes. Essa mistura fora vital para que o Brasil nascesse. Longe dos olhos repressores e conservadores das autoridades europeias, o que aconteceu na América portuguesa teria sido digno de chamar de profano aos olhos da elite católica portuguesa. Como também parada de degredo aos indesejáveis na sociedade portuguesa, bruxas, ciganos e feiticeiros também vieram parar aqui, trazendo suas invocações e receitas medievais, sua intimidade com os diabos das florestas, com Satan e outros espíritos que assustavam a mente do mais fervoroso cristão. 

De posse dessas crendices medievais e longe do policiamento inquisitorial, no Brasil fora perpetuado uma mentalidade ainda presa nos costumes pagãos da Idade Média, ainda que seja na mais profunda camada do solo. Para se ter ideia, mesmo no século XIX ainda se lia contos medievais de Cortes entre os populares, até mesmo após o golpe de 1889. Portanto, como lutar contra algo que está incutido na mentalidade do brasileiro com falsas tentativas de evangelhos a cada esquina em pleno século XXI?

Mesmo com essa tentativa de extinção contemporânea, há a resistência, já que as raízes estão presas e firmes no solo cultural. Só para citar algumas associações e perpetuações da religiosidade popular em solo brasileiro, a lenda da Moura Encantada, por exemplo, que enfeitiçava os jovens portugueses, sentada na beira do rio, coberta de ouro, conhecedora das soluções para os problemas do amor, ganhou vida ao encontrar assimilação com Oxum, Orixá feminino de origem nagô. No Brasil, Oxum é representada justamente como a tal Moura Encantada do imaginário português: Bela, vaidosa, coberta de ouro, sentada em um rio. Outra figura que povoou a mente da população não poderia se outra: O diabo. Figura oposta de Deus, o qual este necessitava para se firmar como o Todo Poderoso e Benévolo Criador, vestiu as lendas das matas indígenas, onde o Curupira e a Caipora, por exemplo, foram tratados como diabos da floresta pelos párocos. Interessante observar a manipulação do diabo pelos indígenas: Laura de Mello e Sousa mostrou que a utilização da figura com chifres representando o diabo ganhou importância entre os nativos por colocar medo àqueles cristãos que tentavam escravizá-los. Ora, sendo o diabo uma figura unicamente cristã, os índios perceberam que "aliando-se" à ele, os brancos não chegariam perto (MELLO E SOUZA; 2009). Interessante observar, também, a relevância de retratar Exu, Orixá yorubá, como uma figura com chifres e rabo pertencentes ao diabo. Tal sincretismo seria relativo às atitudes do Orixá comparadas à de Satanás, ou seja, idênticas, ou até mesmo tendo a entidade africana ganhando aspectos da figura cristã. Além disso, a figura do diabo europeu também é revestida de crenças pagãs da Idade Média, sendo diabretes, duendes, elementais das florestas, entre outros tidos como demônios pela Igreja. 

Portanto, contemple a religiosidade popular brasileira com olhos de observador. Esqueça os dogmas de lado e perceba a beleza da perpetuação de algo que atravessou séculos para construir o seu modo de agir nos dias atuais. Perpetuou-se a liberdade de crença no Brasil a partir de 1824, mas apenas dentro de casa, já que fora havia liberdade apenas para a religião cristã. Entenda o ponto essencial aqui: Com grandes extensões de terras, o sertão carioca não ficou de fora disso. Começando a ser povoado entre as décadas de 1860 e 1870, o que veio a se tornar o subúrbio carioca guardou em si tudo o que foi descrito. À elite legou-se as folhas e os mandamentos bíblicos, mas não integralmente. De fachada, a maioria da população professa o terço, a cruz de Cristo, o Velho e o Novo Testamentos. E em seu íntimo? Quem nunca apelou para uma benzedeira, uma simpatia, um xarope de ervas? Vovó tratava de espinhela caída. Os Pretos Velhos trazem os fundamentos africanos ao mesmo tempo que pedem força à Virgem Maria. Caboclos pedem licença à Jesus Cristo para trabalharem. Nas ruas nos deparamos com os "despachos" nas encruzilhadas, que nada mais é do que um costume cristão português, o de colocar comida para as almas nos cruzamentos das ruas, por sinal um costume medieval.

Entenda: Você vive em uma vitrine multicultural muito interessante. Basta você parar para questionar de onde veio, como veio e como se manteve vivo.






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